Bellinha, como era conhecido por todos, costumava esperar
todos se deitarem, os ruídos cessarem para levantar, pegar casaco e lanterna e
ir a seu lugar favorito. Levantava lentamente o edredom, calçava com extremo
cuidado as pantufas, se arrastava levemente até a porta do quarto, corredor e
depois descia as escadas. Com mãos mais delicadas que uma pétala de flor,
destrancava a porta. Seguia a passos silenciosos até o portão e chegava a sua
tão amada calçada.
Para ela, um lugar perfeito, não tão longe de casa, contudo
fora. A segurança da proximidade com o lar aliada a distância simbólica de tudo
e todos, em sincronia perfeita com a solidão da noite trazia-lhe uma paz
inesperada, na qual quase todas as noites ela mergulhava. Belinha amava esse
lugar, lhe trazia muito boas lembranças, gostava de estar ali, tanto sozinha,
quanto acompanhada. Uma pequena fuga para uma jovem de 15 anos que não tem
ainda sua liberdade para sair, e ainda sim tem seu espírito para lhe exigir uma
fuga, sendo ou não pequena, parecia valer a pena.
Em alguns dias somente admirava a lua e as estrelas, cantarolava
uma o outra melodia ouvida no rádio mais cedo, sentava e sonhava com a
maravilha possível para o próximo dia. Sorria sozinha, nem sempre era assim,
tinha noites que chorava, só que nada ali a entristecia, na verdade só aliviava.
O dia difícil, a discussão com os pais, o mal entendido com as amigas, pensava
sobre isso, permitia que fluísse na mente e assim partir.
Para dias nostálgicos, revivia o passado. Como quando pulava
amarelinha com sua prima na calçada, ou quando contornavam o campo de
bicilheta, do beijo com Carlinhos na semana passada, e tudo mais que aconteceu
em sua adorada calçada.
Se a calçada falasse, será que contaria seu ponto de vista,
se alegraria. Talvez reclamasse de como o tempo passa rápido, contasse de
quantas crianças tornaram-se adolescente e logo adultas passando por ela. De
como a vida muda, o tempo também e no fundo sempre guarda alguma coisa que o
faz parecer tão igual. Possivelmente questionaria os dias atuais, nos quais
crianças já não ralam joelhos e nem correm atrás de bolas em ruas e calçadas,
mas ficam hipnotizadas por pequenos objetos que cantam e brilham.
Porém, Belinha nada sabe disso, é só mais uma adolescente dos
anos 90, vivendo a vida, sentindo tudo de melhor e pior sem nada para
interromper seu mundo real. Neste dia, neste tempo, ela provavelmente achasse
bobo estar em grupos de bate papo em um objetozinho quando poderia sair pra tomar sorvete
com todas as suas amigas.
Mas deixemos Belinha e seus pensamentos na calçada, que
aproveite o que tem, o que hoje já não vale nada.